sábado, 2 de junho de 2012

BUSCA


Ouça-me do que não posso te dizer,
Ouço, ouço, mesmo que eu não esteja
veja-me do que não posso mostrar,
aqui, mesmo que meus olhos estejam
o que escondo, até de mim mesmo,
voltados em outra direção, mesmo
posso esperar que alguém ouça e veja?
com ouvidos tapados, mesmo sem ouvidos - 
Receba-me, receba-me.
estarei aqui.

sábado, 19 de novembro de 2011

Sobre a sensação de quase ter chegado lá

    Chegar lá é um lugar
   Existe tão perto, não existe?
   Estivemos próximos
   Quem acreditou nisso?
   Somente nós mesmos
   Eternos sonhadores
   Se ainda fosse possível culpar alguém...
   Pensamos quase ter chegado lá
   E lá esteve mais longe do que nunca
   Abandono a colina de Sísifo
   Deixo aos mais fortes do que eu

   Ou menos cansados
   Ou mais sonhadores
  

sábado, 21 de maio de 2011

OLHARES

Entrei no restaurante decidido. Pediria uma resposta hoje, uma definição. Certo receio me acompanhava, claro, pois era possível que esta minha ânsia de definir, minha necessidade de alguma certeza, seria exatamente o que poria tudo a perder. Mas como escapar? Como me aguentar em terreno incerto, deslizar entre tons de cinza, sem saber do branco e do preto? Relações incertas não eram para mim.
A súbita mudança do sol para a sombra do salão principal deixou-me desorientado por segundos. Mas não tirei meus óculos escuros. Chegaria até ele com minha armadura completa. Havia poucas mesas ocupadas no restaurante. O movimento do almoço começava lentamente. Eram meio-dia e dez. Marcara com ele ao meio-dia, pensando que um meio-dia exato poderia ser uma lâmina, o fio de uma meia-noite, a separar um dia de outro.
Instintivamente segui adiante pelo conhecido caminho até o terraço. Meus planejados dez minutos de atraso não serviram para nada. O terraço estava vazio; Ricardo me falhara em sua propagandeada pontualidade britânica. Os guarda-sóis sobre as mesas produziam sombra, mas a luz solar inundava tudo, o que confortavelmente me desculpava para permanecer com meus óculos escuros.
Parei no limiar entre sombra e sol.
Ele parou no limiar entre sombra e sol.
Segui o cliente que entrou e foi em direção ao terraço; hoje sou eu o responsável por esta área. Observei-o com um olhar que não é apenas o olhar do garçom.  Agora, com ele parado a ponto de entrar no terraço, vejo, através da camiseta branca, os músculos de suas costas se tensionarem rapidamente e pouco a pouco relaxarem. Imagino o que aconteceu: esperava encontrar alguém e este alguém não está ali. Ele passa a mão lentamente pelos cabelos, como se pensasse no que fazer. Dirige-se a uma mesa, em um passo bem mais vagaroso do aquele com o qual entrou no restaurante.
Aproximo-me e ele não me vê, vê apenas o garçom.
- Por favor, uma caipirinha de vodka.
Vai beber em homenagem a quem deveria vir e não veio? Saio do terraço e levo o pedido à cozinha. Será a bebida preferida dele ou de quem não veio? Estará abandonando ou sendo abandonado? Chegara tão decidido, mas o que fará agora? (Por que acho que é uma história de amor?) Talvez ele viesse disposto a tentar mais uma vez, mas é possível que alguém tenha decidido por ele terminar da pior maneira: a ausência. Também eu já sofri abandonos – mas que bobagem essa de imaginar que ele vive minha história.
Vou e venho, atendo outros clientes, pois pouco a pouco são ocupadas as mesas do terraço. O homem continua à mesa, sozinho. Pegou e olhou seu telefone celular. Pensou em ligar?  Guardou o celular no bolso da calça.
Ele me pede mais uma caipirinha. Esta é rapidamente consumida e logo me pede a terceira. Pedirá uma quarta? Agora o movimento é mais intenso, não consigo observá-lo o tanto quanto gostaria.
Ele faz sinal para mim. Aproximo-me. Antes que peça algo (a quarta caipirinha?), falo:
- Desculpe-me por lhe dizer isto, mas o senhor já tomou três caipirinhas. Não seria hora de comer algo?
Ele levanta os olhos para mim.
Levanto meus olhos para ele.
O garçom é um homem alto, loiro, de olhos verdes brilhantes. Como não vi que era bonito? Em seus olhos, vejo preocupação, e não a zombaria que suas palavras poderiam pressupor. Tiro os óculos escuros, quero que ele também veja meus olhos, desarmo-me. Este homem sabe tão facilmente assim reconhecer alguém que foi abandonado? Há algo mais em seu olhar, que ele mantém fixo no meu, agora que desnudei meus olhos, há profundidade. E há mais, desejo, sim, e no fundo, uma certa solidão, que o faz reconhecer a solidão alheia.
- Você estará livre mais tarde? - pergunto.

domingo, 3 de abril de 2011

Sobre diários...

Fixar o tempo: construir para si uma memória de papel, criar arquivos do vivido, acumular vestígios, conjurar o esquecimento, dar à vida a consistência e a continuidade que lhe faltam... (p. 277)

Sentir prazer em escrever: pois escrevemos também porque é agradável. É delicioso dar forma ao que se vive, progredir na escrita, criar um objeto no qual nos reconhecemos. (p. 277)

Philippe Lejeune. O pacto autobiográfico.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Atendendo a pedidos - do fundo do baú (2003)

A tesoura treme em minha mão. Não é incrível como hesitamos mesmo diante da decisão já tomada? Há uma grande distância entre saber o que se quer e os atos necessários para concretizar o querer. Será que isto ocorre apenas comigo? Serei o único que hesita, o único que sente as pernas tremerem quando se aproxima do que quer? Todas as pessoas que conheço me parecem sempre tão objetivas, tão determinadas, seguindo passo a passo o caminho que traçaram em busca de seus objetivos. Eu pareço bater em mil portas fechadas, ir de encontro a centenas de muros proibitivos.

Porém, faço um gesto. Pego em minhas mão um objeto singular que une duas facas, uma virada contra a outra, preparadas para, a uma leve pressão do polegar contra os dedos indicador e médio unidos, cortar o que estiver em seu meio. Assim, sigo, com as mãos meio trêmulas, pressentindo na margem do meu campo de percepção a inevitabilidade dos meus gestos. Junto meus cabelos com as duas mãos, como se fosse prendê-los em um rabo de cavalo. Seguro-os com uma mão, enquanto a outra segura a tesoura. Em frente ao espelho, sem determinar claramente o que estou fazendo, fecho as hastes cortantes, da esquerda para a direita. Sinto os tufos de cabelo soltarem-se na mão que permaneceu segurando-os. A própria ação parece fazer sua certeza, um instante que se concretiza no diâmetro de milhares (milhões?)  de fios de cabelo agrupados. Como medir o tempo entre o primeiro e o último fios a sentirem a ação da tesoura? Para mim eu atravessava a grossura da corda me prendendo à bagagem acumulada de gestos imperfeitos de meu passado. Vi os eus antigos que me puxavam para o fundo do poço agora rodopiarem como peças velhas de roupa caindo no abismo e me deixando solto. Agora estava feito: o corte acontecera.

Coloquei o tufo cortado na sacola plástica de supermercado que eu já separara previamente para este fim. Esfreguei uma mão na outra para me separar dos fios que, úmidos, insistiam em permanecer agarrados a mim. Os cabelos me parecem algo morto, uma parte cirurgicamente extraída de um estranho.

- Cortar o velho para deixar vir o novo.

Tão simples assim?


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Intermezzo






Choro ao terminar de ler "Manual de Pintura e Caligrafia". Não é um choro convulso, é um choro discreto, adequado ao lugar onde estou, misto de cafeteria e padaria. Duas lágrimas, ou talvez uma, me escorrem de cada olho. Por que avaliar, investigar este impacto? Deixo que continue aí: choro ao terminar de ler "Manual de Pintura e Caligrafia". E, assim, digo tudo. Mas não evito, nem consigo evitá-lo, questionar, indagar, buscar os comos e os porquês. O livro termina com um casal, do qual o homem é o personagem principal e narrador, que recebe a notícia de que caiu o regime fascista de Portugal. Estes movimentos sociais me emocionam, assim como me emocionei, e chorei, na vitória de Dilma. Parece-me que se concretiza, e age, nestes momentos, um abstrato, como Nação, Pátria ou Povo, enfim: a Voz do Povo, a Vontade da Nação. (Mas a qual preço? Sob quais alianças? E o quanto entregamos de nossos ideais?)

Choro ao encontrar o político em um livro intimista. Mas é exatamente quando a dimensão política penetra na vida do personagem, que ele pode fechar um ciclo de crescimento no qual ingressou ao começar a escrever. E parece neste exato momento reconciliar-se com a pintura. O livro começa com um projeto de pintura e termina com um projeto de escrita.